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"A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami" - sobre a origem do mar, dos homens bracos

Foi Omama que nos criou, mas foi também ele que fez os brancos virem à existência. Há apenas um único e mesmo céu acima de nós. Só há um sol, uma lua apenas. Moramos em cima da mesma terra. Os brancos não foram criados por seus governos. Eles vêm da fábrica de Omama! São seus filhos e genros, tanto quanto nós. Ele os criou há muito tempo, da espuma do sangue de nossos ancestrais, os habitantes Hayowari. Hayowari é o nome de uma colina, situada entre as nascentes do rio Parima e as do alto Orinoco, que chamamos Hwara u. É lá que fica a origem dos rios, onde Omama furou o solo de sua roça para aplacar a sede do filho. Quando eu era criança meu padrasto me falou bastante dessa gente de outrora e hoje, tendo eu mesmo me tornado xamã, me acontece muitas vezes de ver suas imagens e ouvir suas palavras. Por isso posso falar dessas coisas. Omama criou os Yanomami depois de ter pescado a filha de Tëpërësiki, o ser do fundo das águas. Ele copulou com ela e foi a partir do ventre dela que nos tornamos muitos. As pessoas de Hayowari faziam parte dos habitantes da floresta do primeiro tempo. Eram os filhos de Omama e de sua mulher, Thuëyoma. Tornaram-se forasteiros bem mais tarde, depois de Omama ter feito a água jorrar do chão e ter fugido para bem longe, a jusante de todos os rios, em direção à terra dos brancos.

Esses ancestrais de Hayowari viraram outros durante uma festa reahu à qual tinham convidados seus aliados, para enterrar as cinzas dos ossos de um dos seus. Aconteceu assim: era o último dia, logo antes de os convidados, que eram muitos, irem embora para suas casas. O homem encarregado de distribuir entre eles a caça moqueada das cinzas do morto colocou no centro da casa um montículo de pó yãkoana sobre uma placa cerâmica. Um grupo de convidados e anfitriões foi se formando em torno dele, conversando, e começou a inalar grandes quantidades desse pó. Era forte, e todos fungavam com sonoras exclamações de aprovação. Passou-se algum tempo, e os homens foram formando pares, agachados cara a cara, para iniciar um diálogo yaimuu. Submetidos ao poder da yãkoana, todos ficaram muito exaltados. Batiam-se nos flancos com as palmas da mão para pontuar as palavras. Ao cabo de algum tempo, sua raiva aumentou tanto que começaram a se alternar dando socos no peito uns dos outros. Um grupo de convidados formou-se para atacar um dos anfitriões, que tinha ficado isolado. Do outro lado da casa, a mãe dele, mulher idosa, começou a insultá-los furiosamente, para vingá-lo. Depois, chamou aos berros o marido da filha, para vir acudir o cunhado. O rapaz ainda estava recluso num recinto de folhas yipi hi com a esposa, que acabara de ter a primeira menstruação. Ao ouvir o chamado da sogra, saiu correndo para vingar o cunhado, sem pensar no perigo.

A floresta ainda era jovem naquele tempo. Por isso, assim que o rapaz pôs o pé para fora da reclusão, o ser do caos Xiwãripo começou a amolecer e a desfazer a terra ao redor dele. Então, de repente, Motu uri u, o rio do mundo subterrâneo, irrompeu com toda força, abrindo um enorme rasgo no chão. Num instante, a violenta torrente cobriu toda floresta ao redor e despedaçou a casa da gente Hayowari. Foi mesmo aterrador! Todos foram levados pela força das águas, ainda agachados, cantando ou se batendo no peito. Era possível ouvir seus gritos se perdendo ao longe, conforme eram carregados rio abaixo. Alguns tentaram fugir na floresta: viraram veados. Outros tentaram subir nas árvores: se metamorfosearam em cupinzeiros. A maior parte se afogou, ou foi comida por piranhas kana e enormes jacarés pretos poapoa. É por isso que, ainda hoj, os xamãs têm de trabalhar para impedir a água de Motu uri u de jorrar de baixo da terra. O enorme buraco de onde ela emergiu em Hayowari no tempo antigo ainda é visível nas terras altas, apesar de ter sido coberto pela floresta. É possível vê-lo de avião, nas nascentes do Orinoco e dos rios Catrimani e Parima. Também chamamos esse lugar de Xiwãripo.

Essas águas que surgiram com tanta violência do chão em seguida fizeram uma longa curva, descendo as colinas para se espalhar longe pela floresta, em direção ao nascer do sol. Quando atingiram o lugar onde as terras ficaram planas e ventosas, começaram a girar com rapidez num enorme redemoinho. Depois foram pouco a pouco perdendo velocidade e o movimento delas foi se acalmando. ficaram assim desde então, imóveis, formando um lago vasto como o céu. É o que os brancos chamam de mar. Um vendaval Yariporari vive no centro dessa imensa extensão de água, em cujas profundezas vivem poraquês gigantes e seres redemoinho tëpërësiri, que engolem os humanos. Escondem-se lá também enormes peixes-epidemia, de dentes afiados e cuja cauda lança raios, e seres girinos gigantes enfurecidos, que destroem as embarcações dos brancos.

Dos Yanomami que se afogaram nas águas surgidas do rio Motu uri u não restou nada senão vastas manchas de espuma de sangue, levadas pela corrente para jusante, até onde os rios se tornam muito largos. Foram descendo devagar até o lugar onde Omama se instalou depois de ter fugido das terras altas. Assim que ele as viu, aproximou-se para recolher pouco a pouco, num cesto pequeno, a espuma vermelha que flutuava em sua direção. Em seguida, depositou-a com cuidado na margem, e começou a dar-lhe forma com as mãos. Ela se aqueceu, e novos humanos acabaram surgindo dela. Primeiro foi uma espuma quase sem cor que passou boiando. Omama juntou-a em montículos, que trouxe à vida colocando-os numa terra distante, dou outro lado das águas paradas. É a terra dos ancestrais dos brancos que vocês chamam de Europa. De modo que ele criou primeiro aqueles que nossos maiores nomeavam napë kraiwa pë; essa gente de pele tão branca quanto papel. Com a espuma avermelhada cada vez mais escura que a corrente carregava, criou depois outros forasteiros. Dessa vez, era gente que se parece conosco. Instalou-os perto de nós, na mesma floresta. Foi assim que ele trouxe a espuma de nossos ancestrais mortos de volta para de onde viera e guardou sua imagem na terra do Brasil, que é para nós a terra de Omama. São eles que nossos maiores chamavam napë pë yai, os “verdadeiros forasteiros”, os outros índios: os Puxiana, os Watata si e as gentes do baixo rio Demini, que foram antigamente nossos vizinhos, e também os Ye’kuana, os Makuxi, os Tukano, os Wajãpi, os Kayapó e muitos outros.


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